Wednesday, December 20, 2006

BETA - IV

Novo dia no acampamento infantil. O sol ergueu-se tímido por causa da chuva do dia anterior. Hélios levantou-se preguiçoso, mas os Irenai não. Logo seu sinal vibrou por toda a cazerna, e os meninos estavam de pé. Heleno ergueu-se primeiro, Iolau dormiu tanto que não ouviu o sinal tocar, foi seu amigo que o chamou. Ele esfregou os olhos e tentou entender o que acontecera, quando lembrou de como fora tocado por seu amigo, seu rosto cobriu-se de um tom carmim em instantes. Ele quis esconder-se sob aquela coberta o quanto pudesse, mas Heleno falou com sua voz firme de menino.

- Temos que esconder a coberta, Ios. Se algum dos meninos a encontrar, com certeza, roubar-nos-ão.

Iolau concordou e, lentamente, sem olhar nos olhos do seu amigo, arrumou a coberta e escondeu-a sob a palha. Contudo, sempre que Heleno estava distraído, olhando para fora, procurando as armas deles, checando se havia parado de chover, Iolau aproveitava para olhar para seu amigo. Reparou no seu corpo. Na sua postura. Tentou até corrigir a sua. Sempre com os ombros caídos e a queixo tocando o próprio peito, ele se ergueu. Repirou fundo. E encheu os pulmões de ar completamente pela primeira vez em sua vida.

Arrumados e armados, Heleno e Iolau partiram para a cantina. Chegaram e sentaram-se na mesa de sua sissítia e comeram o leite ralo e o pouco queijo que foi servido. Chegaram juntos pela primeira vez, e também sentaram lado a lado. Conversando animadamente. E quando eles caminhavam até a mesa, alguns meninos comentaram e riram quando Iolau passou. Lembraram da luta. Das humilhações proferidas. Ele normalmente se ofendia muito com o que era dito. Normalmente por causa disso ele não olharia no rosto de ninguém em sua mesa com vergonha. Contudo, desta vez, antes que ele sentisse algo, Heleno se interpôs.

- Iolau foi um grande guerreiro ontem! Soube perder!!

Iolau não viu os meninos que o encarniçavam, apenas viu os olhos verdes de Heleno. E lá encontrou forças para enfrentar as ofensas que eram dirigidas a ele. Na amizade de Heleno, Iolau se tornava mais forte. Porém, mesmo assim, no desejum, sentados à mesa, Anquises se aproximou. E tomou a comida que Iolau levava a boca.

- Acho que tu não mereces este alimento - e riu - ele pertence aos guerreiros.

Iolau não soube o que fazer, nem precisou. Heleno ergueu-se de súbito.

- Devolve, Anquises.

O menino gigantesco se assustou. Olhou para Heleno, e lia-se pavor nos seus olhos.

- Que tens com isso, Heleno? Disse um menino atrás de Anquises.

- Ele é da minha sissítia. Meu amigo. Devo protegê-lo, como ele a mim.

Anquises ficou ainda com mais medo. E quando mais dois meninos da mesa se levantaram: Alexandre e Clício. Ele claramente desistiu de seu intento. Devolveu a comida de Iolau e gaguejou um pedido de desculpas que fez o sorriso de Iolau se iluminar. Ele voltou cabisbaixo para a mesa dele, e pode-se apenas ouvir, ao longe, Tales, o líder dos Águias, a sissítia que Anquises fazia parte, reclamar com seu subordinado, informando-lhe que eles não seriam castigados por causa das brigas que Anquises gostava de arrumar.

- Já fostes alertado pelos Irenais, Anquises! Não serei açoitado por ti!!

Iolau encheu-se de força e entendeu finalmente para que servia uma sissítia. Ele entendeu que os membros dos Corujas tinham agora um pacto de união que duraria para sempre. Ele lembrou que seu irmão sempre encontrava com os amigos de sua sissítia. Ele, olhando em volta, para seus amigos, lembrou que o grupo de seu irmão que chamava-se Linces. E as poucas estórias que seu irmão se preocupou em contar-lhe foram exatamente sobre os Linces. Agora, ele olhava em volta e se via entre os seus próprios Linces. E também olhava para Heleno, que o chamara de amigo.

- Eu tenho amigos. Sussurrou ele para si mesmo.

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Thursday, December 14, 2006

BETA - III

É estranho conhecer seu próprio futuro. Mas os amados das Musas sempre têm este dom. Prevêem o futuro e conhecem o passado. Porque elas mesmas sabem tudo o que foi e o que está por vir. Elas os contam. Sopram em seus ouvidos em forma de versos, com notas de flauta, sempre que a cítera vibra. E assim Iolau acordou sabendo que haveria de lutar naquele dia. Mas as Musas foram caprichosas, não contaram se ele venceria ou não. Ele apenas saberia que teria de lutar. Por isso acordou cedo, já com lágrimas nos olhos, Heleno estranhou, porque normalmente Iolau acordava com esperança no dia. Era o que seus olhos deixavam ver. Alguma esperança. Mas desta vez não. Ele foi desolado para a cantina, comeu pouquíssimo e pouco falou com Heleno. Era somente com ele que Iolau falava. Arrastou sua espada e seu escudo até o campo, demorando-se sob a chuva, e quando um Irenai ordenou os treinos, ele lutou.

Isso era verdade. Quando Iolau precisava lutar, se defender. Ele nunca fugira. Já brigara com alguns meninos até arrancar sangue e cabelos deles. E nos treinamentos apesar da pouca força, usava toda a ela. Ele sabia que não podia deixar de aprender aquilo que estavam os ensinando ali. Ele pensava inclusive que a forma mais fácil de passar por tudo aquilo era aprender o oficio do deus da guerra o mais rápido possível para poder voltar pra casa. E ele teria agora que lutar, ele sabia. E faria. E tentaria vencer. Foi ai que ouviu:

- Onde está o músico?

Riram. A chuva redobrou sua força.

- Cadê tua cítara, bonequinha?

- Acho que cantar para o paidonomos não adianta né?

- Ele vai correr logo que chegar ali em cima.

- Ele deve é chorar!!

Ele chegou aos pés de Artemidoro martirizado. Seus cabelos escorridos e sua roupa molhada pela chuva davam-lhe uma aparência ainda mais frágil. Lágrimas forçavam passagem, mas o professor levantou-o pelo queixo e olhou diretamente nos olhos negros de Iolau. Iolau nunca esqueceria este olhar que recebera de seu professor. Cálido. Tranqüilizador. Ele notou o rosto másculo de Artemidoro também neste instante. Um queixo quadrado ornado por uma bela e macia barba que estava molhada pelos pingos da chuva, olhos castanhos profundos e carinhosos, um cabelo castanho liso e bem cuidado, encharcado, que apesar de preso na parte de trás da cabeça deixava que alguns fios escondessem suas temporas. Artemidoro segurou seu queixo e disse-lhe:

- Tens o nome de um herói heráclida, honre-o.

Anquises então apareceu na sua frente. Ao ver aquele menino, que apesar de ter sete anos como ele mesmo, passava perfeitamente por um menino de onze anos, Iolau se apavorou. A partir daí foi tudo muito rápido.

- Anquises, a bonequinha já chora!

- Acaba logo com isso, Anquises!

- Mole! Efeminado!! Dado a prazeres!! Descontrolado!

- Agora tu aprendes a ser homem! Agora aprendes!

- N-não é justo que eu lute desarmado!

- Basta!!

- Anquises venceu!

E ele passou a ver tudo em vermelho sangue. Caiu no chão. A chuva desabou sobre sua cabeça. Com seus joelhos fracos. As lágrimas brotaram em quantidade. Doía-lhe o corpo todo. As coxas. O rim. O rosto. E ele ouvia os gritos de vivas se afastando. Foi quando sentiu um pano tocar-lhe a face. Alguém limpava a lama que ele tinha no rosto. Ele então levantou seu rosto pra olhar quem era e deu de cara com os olhos verdes e preocupados de Heleno.

- Calma! Não foi tão ruim assim! Você lutou bem.

Iolau só conseguia soluçar. Seu corpo arquejava.

- Não suje sua roupa.

Foi a única coisa que ele conseguiu dizer, empurrando a mão de Heleno para longe do seu rosto.

- Há sangue. Temos que limpar. Respondeu Heleno.

A chuva continuou mais grossa. Os cabelos loiros de Heleno havia se tornado escuros por causa da chuva. Seu corpo de menino estava todo exposto, e Iolau não deixou de notá-lo. Foi quando Heleno se levantou e olhou para as nuvens. Iolau ficou na altura de suas coxas roliças. Heleno então lhe estendeu e mão e falou para eles irem. Ajudou-o a se levantar e enquanto caminhava falou:

- Vamos para a cabana, não haverá mais aula hoje por causa desta chuva. Não terminará tão cedo.

Iolau tentou olhar as nuvens, mas uma pontada nas suas costas não deixou que ele erguesse a cabeça. Ele então continuou apoiado nos braços de Heleno até a fonte que servia de banho para os estudantes. Heleno tentou despir Iolau. Mas este não permitiu. Disse que ficaria envergonhado.

- Nem meus irmãos me viram nu antes. Comentou.

Heleno meneou a cabeça. E mesmo assim despiu seu amigo. Ele deu-lhe banho, limpando com cuidado os ferimentos que Anquises provocara. A chuva continuava caindo. Heleno aproveitou e lavou suas roupas e as de Iolau, e nus, os dois voltaram para as barracas. Heleno então retirou de debaixo de sua cama uma coberta de lã de carneiro, ricamente bordada. Iolau tremia meio inclinado, porque não dava para ficar completamente ereto naquela cabana. Heleno explicou q era para o inverno e juntou a palha das duas camas e cobriu com a coberta. Deitou-se e disse:

- Venha!

Iolau deitou-se num canto. Heleno riu e o puxou pra perto de si.

- Assim não dá pra gente se enrolar, né, Ios?

Iolau sentiu-se ruborizar, pelo apelido novo e carinhoso, pelo corpo de Heleno se aproximando do seu, mas, antes que ele fizesse algo, logo o braço bronzeado de Heleno envolveu seu corpo, puxando a ponta da coberta de lã que estava mais longe e envolveu os dois meninos. Iolau sentiu o calor do corpo de Heleno. E uma tranqüilidade arrebatadora tomou seu corpo e mente. As pernas do menino loiro tocando as suas, e sua respiração em seu pescoço. Iolau nunca dormiu tão tranqüilo. E nesta noite não houve lágrimas por causa de sua mãe. Ele reencontrara um colo acolhedor.

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Monday, December 11, 2006

BETA - II

Certamente Iolau era o menino que mais sofria naquele acampamento por estar longe da família. Muitos passaram a sua primeira noite chorando, mas aos poucos os amigos, as brincadeiras, a excitação por se tornar um guerreiro ou o cansaço pelos treinamentos calavam o choro noturno. Mas Iolau continuava a chorar. Todos calaram-se. E ele continuara a chorar. Gemia por Alyssa, sua tia, a quem ele chamava de mãe. Pelo aconchego de seu colo e o calor de seus braços gordos. Gemia pelas canções de ninar que ouvira até a véspera do dia em que o trouxeram para aquela escola.

Sua cabana ficava no centro do acampamento dos Pítus. Era pequena, úmida e escura. Na lista dos Irenai, ele deveria dividi-la com um menino de cabelos castanhos, chamado Calímaco, que, contudo, na primeira noite ainda foi retirado de lá e trocaram por outro menino. Este menino era aquele que ficara diante de Crates, e fora o primeiro a seguir Artemidoro para o acampamento. Iolau não se lembrava dele. Suas lágrimas e seu medo naquela mesma tarde não permitiram que ele gravasse sua fisionomia. O menino não sabia por que fora mudado de sua antiga cabana para aquela outra e chegou conversando isso com Iolau. Ele era simpático. Seus olhos verdes eram encantadores, juntamente com aqueles cachos dourados que caíam sobre seu rosto. Anunciava-se ali uma beleza incomum que ainda estava por brotar, mas que Iolau já notara. Apresentou-se Heleno. Mas Iolau não respondeu. Apenas sorriu um sorriso pálido, virou-se e chorou.

Somente duas semanas depois, por causa de constantes e insistentes tentativas de conversas de Heleno, Iolau teve coragem de dizer-lhe a primeira palavra. Iolau estava sentado, abraçado as próprias pernas, num canto da cabana, quando disse o próprio nome.

- Eu me chamo Iolau.

- Como o companheiro de Herácles?

Iolau confirmou com um meneio de sua cabeça. Seus curtos cabelos castanhos balançaram e ele tentou contê-los com suas mãos magras e brancas. Ele próprio assustara-se como suas mão eram brancas. Heleno ficou parado olhando pra ele, e Iolau então olhou para as mãos de Heleno. Mais fortes. Bronzeadas. Diferentes. Heleno saltou. Iolau se assustou. Mas ele começou a representar as aventuras de Herácles e, às vezes, clamava pela ajuda de seu companheiro Iolau. O jovem e magro menino, com nome de herói, apenas ria, nunca participando dos castelos do seu companheiro, mas foi quando Iolau finalmente riu. Pela primeira vez em muito tempo. Finalmente o acampamento dos Pinheiros ouvira as alegres gargalhadas do jovem Iolau.

Mas ele não estava feliz. Quando o sono pousou suas asas sobre os meninos, e Heleno adormeceu. Iolau se sentiu sozinho de novo. Ele sentiu falta da voz de Alyssa dizendo-lhe: "boa noite, ratinho". Sua mão macia tocando-lhe os cabelos. E suas lágrimas molharam a palha em que ele dormia. E suas carnes tremeram pelo frio de uma noite de primavera espartana.

No outro dia, nas primeiras horas dos dias, os meninos encontraram-se em sua aula de música e dança. Era a aula que Iolau mais gostava. Ele gostava principalmente da cítera, apesar de que aquele não era um instrumento adequado para as aulas que eles tinham. Naquela aula eles deviam aprender música marcial, e também aprender a marchar e comportar-se diante de seus superiores. Em outras palavras, na aula de música e dança eles aprendiam a ficar parados e em silêncio.

Contudo, em raros momentos, eles podiam tocar. E quando Iolau tinha sua chance ele corria a sua cítera, e ali ele conseguia a arma mais poderosa que possuía. Ninguém se atrevia de arrancá-la de Iolau quando ele tocava. Ninguém cometeria tal crime. Se, provavelmente, se atrevesse seria fulminado por um raio do tronissoante Zeus. Seus dedos suaves eram perfeitos para a cítera. Sua voz chorosa se transformava numa voz potente e melodiosa quando de posse daquele instrumento. E como ele conhecia as mais belas canções. As mais belas. Fazia a todos lembrar de casa. Eram as canções que suas mães cantavam para fazê-los dormir. Ninguém se atreveria. Nem mesmo Artemidoro.

Um dia, numa aula de música, todos estavam paralisados pela poesia de Iolau. E, de súbito, Artemidoro chegou à parte do bosque em que o professor de música e dança, Merínes, escutava o seu aluno tocar. Artemidoro teve a intenção de acabar com aquilo, o próprio Iolau percebeu, mas segundos depois ele se encantou por aquele menininho magrelo que cantava como o próprio Apolo.

- Pelos deuses, as Musas o abençoaram, Merínes. Foi o que Artemidoro comentou.

- Alguns o são, meu caro.

- Vejamos então se os dons de Ares também correm em suas veias. Falou Artemidoro afastando-se.

E naquele instante Iolau calou-se. Sua cítera caíra no chão e como todos os poetas que as Musas beijam a fronte ele viu o próprio futuro. Sua luta seria no próximo dia.

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Thursday, December 07, 2006

BETA - I

Iolau não queria ir. Ele sabia o que o esperava. Ele trancou-se no seu quarto. Sua tia Alyssa implorava que ele abrisse a porta. Ela dizia que era o momento de ir. Não haveria chance de continuar em casa.

- Será melhor pra você, ratinho. Eu prometo.

Iolau, porém, continuava duvidando. Ele olhava em torno de si. Sentia a pedra dura e gelada contra suas magras carnes. O chão e a parede ele pensava. Foi quando repentinamente a voz de sua tia se calou. Ele aguçou os ouvidos para descobrir o que acontecia e uma perna atravessou a porta sólida do quarto, arrebentando-a. Era seu irmão. Iolau. Como ele. Pegou-lhe pelo braço magro e ergueu-o.

- Cansei de esperar menino. Papai já está no carro esperando. Respeite a idade dele.

Iolau tinha sido filho temporão. Seu pai já passara dos sessenta anos quando ele nasceu. Com isso tinha abandonado suas armas de guerreiro e agora se sentava na Gerúsia. Era um velhinho de cabelos grisalhos e carnes fracas. Precisava ser amparado sempre que se levantava e sua voz não podia mas ser ouvida a distância. A mãe de Iolau morrera ao dar-lhe a luz, e ele acabou sendo criado por sua tia Alyssa, uma mulher carinhosa e gulosa, enquanto todos os seus irmãos serviam o exército de Esparta. Agora seus irmãos retornavam a sua casa, apenas Etolo ainda dormia na cazerna. E o pequeno Iolau a deixava. Mas ele não queria. Ele gritava pela tia. Implorava que não o levassem. As lágrimas cegavam-lhe os olhos. E apesar das lágrimas também correrem-lhe pela face, nem Alyssa impediu que ele fosse colocado no carro.

Tentou entregar-lhe um manto apenas. Contudo o irmão mais velho de Iolau não permitiu.

- Estas carnes fracas precisam do frio. Ou que ele roube de alguém lá se precisar, neste caso fará bem a inteligência.

E riu alto.

No carro, Iolau chorava. Tentara abraçar o pai, mas fora repudiado. Iolau, seu irmão, apenas guiava o carro. De pé. Ele então se encolheu em um canto, em que o joelho de seu irmão ficava na altura do seu nariz. Ele podia ver as coxas poderosas daquele guerreiro espartano esconderem-se sob a túnica. Também via o caminho que eles tomavam, porém só quando este se distanciava. Com seus olhos marejados Iolau deixou Esparta ficar para trás, viu uma das pontes sobre o rio Eurotas e logo eles chegaram ao campo dos hilotas. Viu as Brisas brincarem com a cevada que estava florescendo e com o trigo do lado direito do campo. Tempos depois, chegaram às campinas que se tornariam o lar do menino durante os próximos treze anos.

O irmão mais velho de Iolau até tentou confortá-lo.

- Veja, pequeno. Teu novo lar não é bonito?

Mas o pequeno Iolau não queria um novo lar. E essa expressão fez com que grossas lágrimas fugissem de seus olhos. Ele gemia. Tentava formular frases de protesto. Pensava que poderia argumentar. Quem sabe existisse outro destino para um menino espartano. Mas quando ele abria a boca apenas soluços escapavam. Empurrado ele desceu do carro. Neste momento os dois corcéis brancos que puxavam o carro relincharam. Iolau então foi invadido pela luz do dia que refletida naquelas verdes campinas ganhava um alegria que aos seus olhos era quase cegante. O irmão mais velho de Iolau respirou fundo absorvendo a vitalidade que pairava naquele ar. Ajudou então ao seu velho pai a descer do carro e Iolau continuou lá. Cercado por aquela imensidão verde. Parado. Assustado. Tremendo. Soluçando.

Logo seu irmão o empurrou para junto dos outros meninos que estavam por ali. Tropeçando, Iolau se juntou aos outros de sua idade. De onde ele estava mal dava para ver Crates se aproximar porque eles se mantiveram atrás para que o velho Ícaro, pai de Iolau, não tivesse que disputar lugar com crianças e com os outros espartanos. Ele precisava ser protegido, então se dirigiram a uma pedra, onde o idoso senhor poderia se recostar. Estavam distantes, mas próximos o suficiente para ouvir o que o general dizia.

- Sejam bem-vindos jovens espartanos. Sejam bem-vindos jovens e futuro de nossa cidade. Tua família e teus cueiros abandonem agora e te unam a cidade que sempre será tua mais graciosa mãe: Esparta!

O irmão de Iolau gritara também: Esparta! Esparta! Junto com todos os outros homens. E mesmo o idoso Ícaro fez um esforço fenomenal para erguer-se e gritar. O irmão mais velho de Iolau novamente o empurrou para juntos das outras crianças. Alguns pais já vinham voltando, alguns desvencilhando seus filhos do manto, mas o irmão mais velho de Iolau observou um jovem menino de cachos dourados que estava de pé diante de Crates, e olhou para seu irmão mais novo que precisava ser empurrado para juntar-se a eles. A vergonha que ele sentiu se tornou óbvia, e ainda mais quando o menino caiu, e antes que seu irmão pudesse voltar, Iolau agarrou seu joelho implorando para não ficar ali.

- Pareces que imploras por misericórdia, menino! Não faça os deuses me castigarem por que imploraste como um penitente, chorando sobre meus joelhos.

E se desvencilhou dos fracos braços de Iolau. Iolau caiu por terra e sujou seu rosto, mas não desistiu. Ergueu-se de súbito e agarrou-se na capa carmim do seu irmão.

- Por favor! Balbuciou.

Seu irmão mais velho só repetiu uma coisa.

- E tu tens o mesmo nome que eu e meu avô?

E puxou sua capa com desprezo. O jovem Iolau caiu então no chão e gritou por seu pai. Pensou que já que o coração do irmão era tão duro, talvez comovesse o próprio pai, mas apenas o viu dar-lhe o braço a seu irmão e cochichar-lhe algo. Ele tentou correr em direção a eles, mas sentiu uma chicotada em suas costas. Ele novamente caiu. As lágrimas transformaram a poeira do seu rosto em lama.

Neste momento ele ouviu, Crátes falando:

- Componham-se espartanos! Sejam dignos de vossos pais!

E ele foi erguido por dois fortes adolescentes de não mais de 18 anos. Ele foi carregado, sem força nas próprias pernas para caminhar e levado até junto das outras crianças, onde largado junto a um outro menino de olhar curioso. Ele olhava para Iolau. E este não tentou limpar o rosto, não sentia vergonha das lágrimas derramadas, mas como uma menina tentou cobrir ao corpo que estava desnudo.

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Monday, December 04, 2006

ALFA - VI

Alceu ficou naquela campina deitado de costas. Vendo seus amigos gritando. E soube o que era ser derrotado. Soube como era sentir que havia falhado. E falhado diante de seu professor. E enquanto olhava o céu azul que cobria Esparta, largado naquele chão, ele lembrou do caminho que percorrera até as campinas que eram o limite externo da cidade. Lembrou dos pobres periecos trabalhando a terra em torno da estrada em que o carro de seu pai corria. Lembrou dos escravos que viu separando a cevada para si e para mandar para seus mestres espartanos. Lembrou de ouvir seus cantos de labor. E mais ainda, lembrou das palavras de seu pai enquanto o cocheiro segurava firme os cavalos do carro.

- Alceu, tu irás te tornar um homem, meu filho. Como eu, como teu avô, como teu tio, Artemidoro. Tornar-te-á. Honra-nos. Honra-nos!

Ele ouvia apenas aquilo. Os meninos não diziam nada. Seu gritos eram inaudíveis. Ele ouvia apenas seu pai dizendo que ele devia honrar sua família. Seu sangue.

- Teu avô, que tem teu nome, foi um dos grandes generais de Cleômenes, meu filho. Ele ensinou a mim e a teu tio o valor de ser bravo na batalha. Eu ainda estaria entre os guerreiros se não tivesse chegado a idade de deixar a caserna, teu tio ainda vive lá e eu o invejo. Esta é a vida que todo espartano deve querer para si.

Um suspiro longo e saudoso interrompeu as palavras de Amintas.

- Meu pequeno Alceu, sê forte e obediente. Obedece teu líder de enomotiai. Ou seja este. Obedece aos Irenais que estão acima de tu. Obedece ao teu paidonomos. Obedece aos adultos. Dá-me orgulho, meu filho. És meu único varão. A única chance que teu avô tem de ver sua linhagem entre os guerreiros de Esparta.

As palavras de seu pai ecoavam. E ele apenas viu uma mão estendida para ele. Olhou para o rosto e viu o sorriso aberto e franco de Clício, que por mais que tentasse, não conseguiu odiar aquele menino. Aceitou então sua ajuda, e ergueu-se limpando o pó de sua roupa.

- Todos já foram comer. Vamos?

Alceu acentiu com a cabeça. E Clício continuou a falar. Falou até chegarem à cantina. Cada grupo já estava sentado em sua mesa, Clício e Alceu dirigiram-se a deles. Sentaram-se com a sua sissítia. Uma, entre as duas que havia no seu enomotai. Tinham sido aceitos recentemente, e agora deviam honrá-la. Chamava-se Coruja. A outra Águia. E neste dia tinham muito mais comida que as demais mesas. Tinham há algumas semanas roubado, em uma fazenda não muito distante, queijo e centeio. Eles aprenderam com os Irenais a fazer isso, e também a esconder os restos de alimento entre a palha em que dormiam. Alguns dos meninos inclusive, tinham roubado pelegos de carneiro para forrarem a palha no qual dormiam.

- É mais macio que a palha, e um dia o inverno vai chegar. Repetiam.

Era o que Alceu e Clício também pretendiam fazer, assim que possível. Comeram naquele dia a carne que era servida. A ela juntaram o queijo e o centeio que roubaram. E saíram bem mais satisfeitos das refeições que raramente os faziam felizes. O almoço tornava-se então mais um dos momentos em que as crianças tinham saudade de casa. Lembravam muitos da carne dura que suas mães mastigavam para eles e devolviam-lhes a boca. Agora tinham que roer ossos com pouca carne e dar-se por feliz quando conseguiam roubar algo dos vizinhos do acampamento ou, às vezes, de outra sissítia. A fome era uma companheira comum entre os jovens espartanos.

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Friday, December 01, 2006

ALFA - V

Faltavam poucos alunos a terem sua preleção com Artemidoro quando chegou à vez de Alceu. No dia anterior ele comentara com Clício antes de dormir que não agüentava mais tanta espera. Clício continuava ignorando suas respostas, ocupado demais em falar, mas quando era Alceu que iniciava a conversa, ele prestava atenção. Alceu aprendera a conversar com Clício, ele esperava com que o amigo esgotasse todo o assunto pra apenas depois falar-lhe algo. Clício aprendera também a ouvir. Mesmo apenas nestas condições. Na noite anterior eles falaram sobre o que se falava de Iolau e Heleno no acampamento. Eles eram companheiros de cabana, e desde o dia da luta se tornaram cada vez mais próximos. Ele o havia defendido várias vezes desde então e, com isso, ninguém mais tinha coragem de falar qualquer coisa sobre Iolau com medo de Heleno. Alceu havia comentado que era melhor assim, mas Clício nem chegara a ouvir, apesar de ter comentando o mesmo. Quando Clício calou-se, sem mais assunto, Alceu aproveitou e falou que estava ansioso para lutar. Ele pretendia falar "diante de Artemidoro", mas conteve esta parte por pudor. Clício então respondeu:
- Eu também quero lutar logo! A gente fica muito preocupado. Esperando o dia da gente. Esperando pra saber se vamos ganhar, ou perder. Quero lutar logo, também. Logo!
Naquela noite Alceu teve um sonho. Sonhou que estava em casa, entre os jardins de sua mãe. Ele conseguia sentir o perfume das flores que sua mãe tratava com tanto carinho. Ele também ouvia os risos de sua irmã, Nykke, que sempre encheram de vida sua casa. A via passar girando com sua boneca, cercada por ninfas que só ela via. Ele também ouvia as escravas cantando enquanto espremiam a oliva e cozinhavam carneiro. Ele adorava o cheiro do óleo de oliva recém-espremido quando se misturava com o do carneiro cozido. E como sempre, quando ele pisava na cozinha, a escrava mais velha de sua mãe, Eunôe, virava-lhe e dizia:
- Aqui não é lugar para você, mocinho.
E pegava-lhe no colo e o levava para o jardim, onde a mãe dele costumava ficar bordando com outras escravas e com suas irmãs mais velhas, Gogo e Aretha. Eunôe sentava. Ela sempre tinha uma estória para contar-lhe. Ninfas, serpentes assassinas, sátiros apaixonados, deuses vingativos, Afrodite espartana. Sua sacerdotisa foi a doce e velha Eunôe. Foi sentado em seu joelho, ouvindo Nikke brincar, que Alceu conheceu o mundo sagrado de seus deuses. Ele sonhou com as palavras de Eunôe e acordou quando Herácles agarrava a última cabeça da Hidra de Lerna.
Clício o acordara falando como sempre. Hélios ensaiava seus primeiros raios, quando mais uma vez o sinal de inicio dos treinos tocou. Juntos Clício e Alceu foram tomar seu desejum, e também juntos chegaram ao campo de treinamento. Vários meninos chegaram com eles, e a manhã passou entre exercícios físicos e lutas. Próximo ao almoço, com os meninos cansados e famintos, Artemidoro chegou ao campo. Como havia se tornado hábito nesta semana, os meninos deixaram de parar seus exercícios quando o professor chegava. Eles o observavam, mas deixaram de congelar diante dele. Ainda o temiam, mas um medo muito mais respeitoso do que temível. Apenas quando ele ergue sua voz que todos os meninos pararam seu treinamento. Aproximaram-se de Artemidoro e ele tocou no ombro de Clício. Clício pulou. E adiantou-se falando. Excitado. Disse seu nome. E falou as letras ao secretário que escrevia seu nome. Capa-lambda-iota-capa-iota-omicrón-ni. O adolescente assustou-se e anotou o nome do menino, não sem esquecer de anotar que ele também sabia ler e escrever. Clício viu isso. E tentou comentar com Alceu que o observava, mas Artemidoro não deixou que eles se falassem. Porque tocou no ombro de Alceu também, ordenando que ele se adiantasse.
Clício ficou feliz. E adiantou-se e falou ao secretário que o nome de seu amigo era Alceu. Alfa-lambda-capa-épsilon-ni. A irritação do secretário ficou visível, e Artemidoro comentou:
- Encontraste outro como tu eras, Alcmeon?
O secretário riu de soslaio. Acabou por deixar-se vencer pelas palavras do paidonomos. E logo as armas estavam nas mãos dos garotos. De um excitado Clício e um extremamente preocupado Alceu. Clício parecia ver tudo como uma grande brincadeira. Afinal quantas vezes ensaiara aquela luta com seu amigo Alceu? Muitas. E eles haviam se tornado grandes amigos. Costumavam sair sempre juntos das aulas, costumavam ir ao banho juntos e, nos raros momentos de folga, era com Alceu que Clício passava o tempo. Para ele nada poderia dar errado naquela luta com um amigo. Mas Alceu pensava diferente. Clício não se tornara um fator que facilitaria aquela prova. Mesmo já o tendo derrotado, várias vezes nos treinamentos. Mas antes Artemidoro não os observava, e agora, ele estava lá, de pé, sob o sol do meio-dia, analisando.
Clício foi o primeiro a atacar. Com um sorriso no rosto, ele largou sua espada contra a espada de Alceu. Alceu firmou seu braço e agüentou firme. Logo empurrou seu amigo, que deu um passo para trás e, com o mesmo sorriso, preparou seu escudo para o que vinha. Alceu continuou. Atacou o couro de cabra do escudo com vigor, enquanto Clício caminhava lentamente para trás, até que de um ímpeto o menino letrado girou para a direita e correu, deixando Alceu sem saber o que acontecera. Clício então, ainda rindo, viu os olhos de Alceu procurando-o. Alceu se sentiu um idiota nesse momento e pensou apenas no que Artemidoro pensava dele. Foi quando ele atacou. Clício conteve novamente seu ataque com o couro de seu escudo, novamente girou e novamente manteve-se longe. Nova humilhação subiu ao coração de Alceu. E ele novamente atacou, ainda com mais força. Sua espada vibrou no ar, e explodiu no escudo de Clício, que então ajoelhou-se e atacou o joelho de Alceu com sua espada. A perna de Alceu fraquejou, e ele caiu no chão de costas. Tentou erguer-se, mas Clício apontou a espada para o rosto dele e em seguida jogou suas armas. Nesse momento Artemidoro ordenou o fim da batalha:
- Clício venceu!
E se retirou dali. Conversando com seu secretário.

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Tuesday, November 28, 2006

ALFA - IV

Muitos alunos tiveram seu dia diante de Artemidoro. Alguns se saíram muito bem, e outros foram derrotados de muitos modos. Um destes derrotados foi Iolau, mas ele não foi simplesmente derrotado, foi humilhado. Iolau desde o primeiro dia sempre foi o mais choroso da turma. Todos já o conheciam o bastante para saber que no mínimo ele sairia de lá chorando. Mas nenhum dos meninos esperava que fosse de tal maneira. Naquele dia em que uma suave chuva insistia em cair sobre o acampamento infantil, Iolau foi chamado por Artemidoro.
- Onde está o músico?
Iolau logo soube que era com ele. Levantou-se resignado como alguém que já conhecesse o próprio futuro, logo que se ergueu, risinhos e piadas acompanharam seu caminhar decidido em direção ao professor. Quando Iolau chegou, cabisbaixo e envergonhado das palavras que ouvira, Artemidoro ergueu seu rosto pequeno e delicado pelo queixo e olhou nos seus profundos olhos negros. Os negros olhos de Iolau já estavam marejados. Alceu conseguiu ouvir perfeitamente de onde estava as palavras do professor:
- Tens o nome de um herói heráclida, honre-o.
Artemidoro olhou em volta. Os meninos se agitaram. Todos gostariam de lutar com Iolau. Mesmo Alceu. A chuva caiu um pouco mais forte, e Artemidoro ergueu uma mão para proteger seus olhos dos gelados pingos de chuva que caíam. Os meninos consideravam aquela a melhor chance de todos de sair-se bem diante do professor. Todos sabiam que facilmente derrotariam o choroso Iolau. O que clamava por sua mãe todas as noites. Mas Artemidoro escolheu Anquises. O maior dos meninos que treinavam ali. Iolau não se conteve, as lágrimas já começaram a descer. Um soluço seu deixou-se escapar. E um menino que ouviu, logo gritou:
- Anquises, a bonequinha já chora!
Anquises ficou ainda mais confiante. Logo ele estava diante do paidonomos, armado com sua espada e escudo. E ria despudoradamente em direção a Iolau. Artemidoro se afastou. Os monitores aproximaram-se e os meninos cercaram os dois gladiadores.
- Acaba logo com isso, Anquises. Gritou um menino.
Anquises fincou suas poderosas pernas na lama. Firmando sua postura. Iolau fungou uma última vez segurando suas lágrimas e também preparou suas armas. Ele não pensava em fugir. Alceu estava bem perto nesta hora. Ficou com medo de Anquises, e agradeceu a Afrodite Espartana porque ele não fora escolhido para lutar com aquele brutamontes. Também respeitou mais Iolau a partir daquele instante, e viu que todos faziam o mesmo, porque o choroso menino estava preparado para lutar. Não fugiria. E pra surpresa de todos foi o primeiro a atacar.
Iolau foi rápido e isso surpreendeu Anquises. A espada de madeira logo vibrou nas costas do gigante. E este se irritou. Iolau fugiu e apenas ouviu os xingamentos de Anquises. Mole. Efeminado. Dado a prazeres. Descontrolado. Distante, Iolau se pôs novamente em posição de combate e logo sentiu a espada de Anquises vibrar contra seu escudo. Ele quase foi jogado pela força do ataque do menino, mas conseguiu se segurar. Ele então, apoiou-se no próprio joelho e forçou seu escudo contra Anquises, tentando desequilibrá-lo. O que não funcionou. Anquises, no entanto, conseguiu encontrar um buraco no seu flanco, e desferir um golpe na altura do seu rim, que fez com que Iolau caísse de joelhos.
Enfurecido, Anquises não esperou que ele se levantasse. Puxou-o pelos cabelos e lançou-o a lama. Gritava ele:
- Agora tu aprendes a ser homem! Agora aprendes!
Anquises forçava a cabeça de Iolau ao chão. Fazendo com que ele mal respirasse. As lágrimas quiseram irromper, mas Iolau conteve-se e alcançou uma pedra que estava no chão. Ele ergueu-a e atirou-a contra Anquises. Este fugiu a pedra, o que permitiu que Iolau se erguesse, com lama no rosto e no peplo, mas ele apenas encontrou Anquises com o pé sobre sua espada e escudo, rindo.
- N-não é justo que eu lute desarmado! Gaguejou Iolau.
Em resposta ouviu-se o riso de escárnio de Anquises que o atacou. Iolau tentou escapar, mas quando se viu acuado entre seu companheiro-de-batalha e a platéia, não pode mais fugir. Seus olhos imploravam uma espada, mas nenhum dos meninos se dignou a dar. Os poucos que tentaram foram impedidos por seus amigos. Eles riam. E Iolau sentiu a madeira vibrar em suas espáduas. Ele virou-se e ela vibrou em suas magras coxas. Quando baixou o braço para proteger mais do seu corpo, Anquises aproveitou a brecha e atacou seu rosto. Sangue escorreu. Ele não sabia de onde, mas seu rosto agora estava coberto por lama, lágrimas e sangue e ninguém parecia se importar. Foi quando um "basta" encerrou aquela balbúrdia.
Iolau reconheceu a voz de Artemidoro. Reconheceu a voz do secretário de seu professor também proferindo a sentença final.
- Anquises venceu!
Alceu ouviu as crianças gritarem. O próprio Anquises gritar com uma excitação que denunciava sua infantilidade. Ele viu as forças dos joelhos de Iolau sumirem, e ele deixar-se cair ali, em meio a chuva que continuava lavando-lhe as feridas. Iolau chorava. Soluçava. E Alceu deixou-se acompanhar com os meninos que comemoravam com Anquises, e passavam por Iolau, às vezes aproveitando para aumentar-lhe o sofrimento com um chute ou uma cuspida. Quando ele estava bem na frente, olhou para trás e viu Heleno lá sentado com Iolau. Ele limpava o rosto do menino com seu próprio peplo. Ele agora o passava no rosto sujo de lama do menino. A chuva o ajudava. Alceu teve o ímpeto de voltar, mas apenas parou e ficou observando. Era possível ver o corpo de Iolau arquejando pelos soluços. E também o olhar encantado que ele dirigia ao Heleno. Este era sério. Irascível. Seus cabelos tinham perdido o brilho dourado comum por causa da chuva que os encharcava. E ele não olhava para os olhos de Iolau, olhava para a lama no rosto dele. Alceu ainda viu Iolau ser erguido por Heleno que o levou para o acampamento. E quando eles se afastavam a chuva caía cada vez mais forte. Logo se ouviu os Irenai avisando que as aulas seriam suspensas, que todos deveriam se recolher. E assim as crianças fizeram. E a noite os soluços de Iolau estranhamente não foram mais ouvidos.

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Saturday, November 25, 2006

ALFA - III

Assim era a vida no acampamento. Todos os dias eles acordavam quando Hélios se erguia. Junto com os Irenai de Artemidoro, as crianças faziam seus exercícios até que o professor chegava e iniciava sua preleção. Escolhia alguns meninos, e os colocava para lutar. Heleno foi o primeiro desta preleção. Mas Alceu não se surpreendeu. A postura de Heleno diante das outras crianças, seus cabelos luminosos e olhos faiscantes, faziam com que ele se destacasse facilmente em meio aquelas crianças elameadas nos treinos. Artemidoro o chamou. Mediu-o com os olhos e chamou um dos Irenai que estava com uma cunha e um pedaço de madeira com um menear de cabeça. O menino que não deveria ter mais de 18 anos aproximou-se e falou algo com Heleno, Alceu não pode ouvir o que fora mais imaginou que ele perguntara seu nome, pois logo após o rapaz anotara algo.
Heleno ficou então na frente de Artemidoro, e este chamou outro menino do grupo. Tinha o mesmo corpo de Heleno, porém não a mesma energia. Os braços frouxos pelo medo não sustentavam a espada de madeira. Os olhos não encontravam o de Heleno, muito menos os do seu professor. Quando Artemidoro ordenou que batalhassem, Heleno partiu e o menino protegeu-se. Rápido largou a espada e fiou-se no escudo. Heleno parou, olhou firmemente para o menino e gritou:
- Não lutarei se estiveres desarmado. Pega tua arma!
Artemidoro esboçou um sorriso que só Alceu percebeu.
- Tresante! Algum garoto gritou.
Artemidoro então se ergueu, e os gritos que se preparavam para acompanhar o pior xingamento que se podia ouvir entre os guerreiros espartanos, "covarde", foram contidos pela figura enérgica do paidomonos. O menino de braços frouxos abaixou-se e pegou a arma. Heleno esperou ele erguer-se e posicionar-se. Apenas aí atacou. Seus músculos de menino enrijeceram-se e ele deixou a espada cair. O menino posicionou bem o seu escudo e, ao contrário do que devia, não tentou contra-atacar. Os Irenai próximos a Alceu comentaram isto, e este passou a prestar atenção. Heleno atacou novamente, e sua espada de madeira vibrou, quase quebrando contra o escudo do menino.
- Luta! Incentivou Heleno.
- Parece até um escravo de tão medroso. Gritou alguém entre os estudantes.
Notou-se uma raiva que surgiu no âmago do menino que enrijeceu-lhe as carnes. Ele então se lançou protegido pelo escudo em cima de Heleno. O escudo bateu no peito de Heleno, e abalou-lhe o equilíbrio, e antes deste recuperar-se, a espada, que o menino catara num relance, atingiu-lhe a orelha. Heleno caiu. Zonzo. Com o ouvido zumbindo. Os meninos explodiram em vivas. Alceu mesmo. Não por antipatia a Heleno, mas porque todos se identificavam mais com aquele menino medroso. Heleno ergueu-se de um pulo. E como seu peplo, sujo de pó, seu orgulho também estava manchado. Mas ele manteve-se calmo, e atacou. Largou seu escudo, e lançou-se sobre a espada do menino. Concentrava-se nela, e logo as carnes do menino fraquejaram novamente e ele não pôde mais erguer sua espada. Caiu então sentado e Heleno apontou-lhe a espada para o pescoço. E, por fim, olhou para Artemidoro. Este, comentou algo com o garoto que escrevia algo ao seu lado e este menino falou alto:
- Heleno venceu!
Vivas explodiram. Meninos correram para perto do vencedor. Todos correram. Artemidoro saiu calado, acompanhado de três adolescentes, envolvendo um deles com seu braço, aquele que se passava por seu secretário. Os meninos gritavam até que um Irenai ordenou que eles fossem à cantina, participar da phidita, sua refeição em comum. Desde este dia, Alceu só pensava no dia em que seria escolhido para lutar diante de Artemidoro. Ele não se importava em se sair mal diante de sua turma de alunos, mas em se sair bem diante de seu professor.

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Tuesday, November 21, 2006

ALFA - II

Crates então olhou atentamente os meninos. Parecia admirar a quantidade de crianças que haviam ali este ano e apontou para três dos homens que o cercavam. Um alto e moreno, e os outros dois mais baixos e loiros, mas os três tão fortes quanto Crates parecia ser. Alceu observava tão curioso que esquecera de chorar, apenas fungava de vez em quando. O mesmo acontecera a outros meninos. Crates então gritou:
- Dividiremos vocês em três enomotiai, jovens espartanos. O primeiro grupo (e caminhou entre as crianças separando as que deveriam pertencer ao primeiro grupo) terá como paidomonos Telámon.

Telámon adiantou-se. Era um homem loiro. Não muito alto. Trajava uma armadura completa, com uma capa negra que a escondia e mais um dardo nas suas costas e um espada curta, presa a cintura. Crates continuou. Tocou o ombro de várias crianças, inclusive Heleno, Alceu e o jovem choroso e indicou-lhes como professor Artemidoro, o único moreno do trio de professores que estava ao seu lado. Este usava apenas uma armadura de bronze, decorada com ferro no peito com um leão alado que parecia rugir na alma das crianças. O terceiro grupo Crates outorgou a Zetos.
Cada grupo definido, os professores ordenaram que as crianças os seguissem. Telámon e Zetos chamaram suas crianças e cada um encaminhou-se para um lado do acampamento. Artemidoro nem precisou abrir a boca. Ele desceu a colina em silêncio, Heleno o seguiu e todos os outros seguiram Heleno. Alceu manteve-se no meio do grupo, protegido do vento frio que a primavera na Hélade não detinha, e sua tristeza começava a dar lugar a uma excitação. Ele estava curioso com o que aconteceria agora. As crianças caminharam um pouco, até chegarem a um acampamento. Um mar de cabanas baixas, cobertas por peles de cabra, todas estranhamente feitas com pedaços de pinho que davam aquele acampamento um cheiro próprio. E um nome também: Pítus.
Jovens adolescentes os esperavam então. Traziam chicotes na cintura e Alceu advinhou que eram Irenais. Distribuíram-lhes escudos e espadas de madeira. Outros dois anotavam seus nomes. Ganharam também um copo e um prato, que foram avisados que não deveriam perder, pois não receberiam outro. Foram avisados que cuidassem bem das roupas que trouxeram, porque seriam as únicas que usaria durante todo aquele ano. Nesta hora, Alceu entendeu porque sua ama tinha dado a ele um manto tão grosso apesar de ser primavera, e agradeceu-lhe secretamente. E indicaram onde cada jovem deveria dormir. Pela lista que estava com outro adolescente. Cada barraca cabia duas crianças. Alceu entrou numa das primeiras. Deixou suas coisas junto à entrada, e experimentou o monte de palha que servir-lhe-ia de cama, e logo outro menino pôs a cabeça para dentro da barraca Ele tinha cachos castanhos, olhar curioso e que não conseguia parar de falar um segundo:
- Eu te conheço de algum lugar não? Você costumava sair de casa com teu pai? Eu sempre andava com meu pai, meus tios e meus irmãos!
Alceu respondeu que não. E ele se jogou em outro monte de feno. Guardou suas coisas acima da própria cabeça e continuou a tagarelar.
- Meu pai também me pagou um pedagogo ateniense. Era engraçado. Mas eu sei ler, você sabe? Ah, como é teu nome? Se quiser eu posso escrever teu nome. Mas não tem papel né? Ah, mas eu escrevo aqui no chão mesmo. Como é teu nome?
Gaguejando, Alceu respondeu.
O menino então repetiu e continuou falando.
- Escreve assim ó. – e riscou o chão de areia com o dedo - O meu nome é Clício. Escreve diferente do seu sabia? Gosto de escrever, é legal. Tem gente que diz que é meio como mágica. Meus irmãos também sabem escrever! Polinikes e Hipólito, conhece eles? Meu pai disse que é muito bom saber escrever, isso às vezes salva a vida da gente, ele disse. Meu pai.
E falou mais. Falou da família dele toda. Dos escravos de sua casa, e como brincava com os filhos dos escravos de sua mãe. E enquanto contava essas estórias, sempre pedindo a opinião de Alceu, mas esquecendo-se de ouví-las, tocou-se um clarim. Os adolescentes chamaram as crianças, dizendo que eles trouxessem sua espada e seu escudo. Todos saíram e esperaram na frente de suas cabanas, e logo seguiam os adolescentes até um espaçoso campo.
O cheiro de suor foi a primeira coisa que Alceu sentiu ao chegar. Logo seus olhos alcançaram uma vasta campina, salpicada de pedras e ladeada a direita por um denso bosque. Dali era possível ainda enxergar a sombra da acrópole da cidade e por um instante o coração de Alceu apertou de saudade de casa. Ele pensou quando retornaria a sua casa e veria novamente seus brinquedos. Mas logo ele sentiu o peso de sua espada de madeira e do seu escudo de couro de cabra. O peso de sua nova realidade. Ele reparou novamente no campo. Na grama pisada constantemente pelos meninos, um grupo de adolescente que treinava luta livre no ponto mais distante; próximo ao bosque, crianças mais velhas treinando arco-e-flecha; em outro ponto ele avistou o professor Telêmaco cuidando de seus alunos. Ele então ouviu um adolescente.
- Levantem a espada e o escudo sobre suas cabeças, e corram!
Os meninos não desobedeceram. Nenhum. E eles correram toda a tarde. Sem descanso.

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Friday, November 17, 2006

ALFA - I

Ele era uma criança. Uma jovem criança das famílias mais ricas de Esparta que, como todos de sua idade, abandonava o regaço de sua mãe e de sua família para participar de suas aulas. A partir de agora, Alceu, deixaria seus brinquedos infantis pelas armas que os guerreiros mais famosos do mundo grego portavam. Ele estava assustado. Fora arrancado de sua infância muito rapidamente. E logo estava ali, jogado em meio a outras crianças.
As crianças caminhavam, haviam se despedido de suas mães em suas casas. Apenas seus pais e seus irmãos mais velhos, alguns tios sem filhos, os acompanhavam. Muitos meninos. A frente seguia um guerreiro que impressionou muito Alceu. Era forte, tinha uma grande cicatriz na sua nuca e no crânio, podia-se ver porque sobre ela não crescia cabelos. Ele lembrou imediatamente da propriedade que seus pais tinham no campo. Uma vez
a floresta em torno da propriedade fora derrubada pelos escravos do seu pai. Ele lembrou que a cicatriz na floresta era igual a que se cravava entre os cabelos do guerreiro. Ele tentou comentar com seu pai que o acompanhava, mas este o repreendeu.
Alceu silenciou. E cravou seus olhos no guerreiro. Nas coxas poderosas que sustentavam um tronco forte e uma pesada armadura de cobre. Ele observou cada detalhe. Como as escamas eram sobrepostas uma sobre a outra. Os detalhes em ouro em forma da pavorosa Medusa que decoravam o peito do soldado. As lâminas que protegiam os flancos. Até vê-lo parar.

Alceu então lançou um olhar em torno de si. Viu um campo aberto. Cercado por cabanas de campanha. E viu pela primeira vez o lugar que seria seu lar durante os próximos sete anos. Ele ergueu os olhos lacrimosos a seu pai. Contudo este não o observava, apenas olhava para um outro grande guerreiro que se aproximava. O guerreiro que chegava bateu a mão pesada no ombro do guia, e procurou alguém na multidão. Alceu acompanhou seu olhar e acabou por encontrar uma troca de olhar carinhosa entre o recém-chegado e seu próprio pai. E finalmente ele ouviu seu pai falar:

- Este é Crates, Alceu. Companheiro do teu pai quando eu participava do Batalhão.

E Crates então falou:

- Sejam bem-vindos jovens espartanos. Sejam bem-vindos jovens e futuro de nossa cidade. Tua família e teus cueiros abandonem agora (neste instante o pai de Alceu largou-lhe a mão, o mesmo acontecia com outros pais, alguns meninos choraram, poucos tentavam demonstrar coragem e davam passos a frente, deixando seus pais para trás) e te unam a cidade que sempre será tua mais graciosa mãe: Esparta!

Todos os outros pais, tios e avós sacaram suas armas e também gritaram “Esparta”, Alceu assustou-se. Assustou-se com o metal se chocando. Assustou-se com o poderoso grito dos homens de Esparta. E olhou a sua volta. Viu outros meninos também assustados. Escondendo-se entre as pernas de seus pais. Viu outros chorando largados no chão. E conforme os pais guardava as armas e deixavam o acampamento, via também meninos tentando detê-los, sendo arrastados, pisoteados e levantando-se com lágrimas e terras no rosto. Nenhum dos garotos conseguiu conter as lágrimas. Mesmo Alceu quando viu seu pai afastar-se, não segurou grossas lágrimas que escorriam por seu rosto. Contudo apenas um menino manteve-se inabalável: Heleno.

imagem daquele garotinho de sete anos, cachos dourados caindo sobre a fronte, trajando apenas um curto peplo e uma sandAlceu ficou muito impressionado com a postura de Heleno. A imagem daquele garotinho de sete anos, cachos dourados caindo sobre a fronte, trajando apenas um curto peplo e uma sandália de couro não saíram durante muito tempo da cabeça de Alceu. E também chamou atenção de Crates, que olhou atentamente para os poderosos olhos azuis de Heleno e em seguida falou as crianças:

- Componham-se espartanos! Sejam dignos de vossos pais!

As crianças ergueram-se e todas vendo Heleno diante de Crates se alinharam a ele. Muitos choravam, mas mesmo assim ergueram-se, contudo um menino deixou-se ficar. Ele ainda gritava por seu pai e era contido pelos adolescentes que estavam presentes. Todos os meninos viraram-se para ele, e apesar de também estarem com os olhos cheios de lágrimas, encheram-se de antipatia por aquele que esperniava. Carregado, foi colocado ao lado de Alceu, e este notou então que o menino mordia o lábio para não chorar. Era magrelo e muito branco, parecia uma menina, e seu rosto estava coberto de terra de tal maneira que apenas seus olhos eram reconhecíveis. Profundos e úmidos olhos negros.

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